Pressionado pela alta divida interna e pela impossibilidade de investir no setor, o governo decidiu privatizar e reformular um sistema elétrico estatal e verticalizado, o que, em circunstâncias de equilíbrio entre a oferta e a demanda, já seria difícil. Nada menos que o caos poderia se esperar na implantação de conceitos baseados nas forças de mercado, quando a oferta e demanda mostravam sérios desequilíbrios e as próprias autoridades governamentais não indicavam o direcionamento ou sinalizavam com clareza onde se pretendia chegar.

Esse novo mercado, entregue aos atores colocados em cena, empresas que participaram das privatizações, estaduais o federais que permaneceram, denominados agora agentes, não conseguem evoluir porque os interesses entre os parceiros são conflitantes e ficou em suas mãos definir regras e procedimentos de um mercado competitivo. Na fase de implantação, já se avizinhava o racionamento e as regras para essa emergência na o foram claramente definidas, o que dificulta agora asso soluções.

A criação de um sistema centralizado de planejamento da expansão cia geração, papel desenvolvido pelos GCPS (Grupos de Coordenação de Planejamento do Sistema), foi esquecido quando se passou do esquema de concessões para o de licitações. Outro ponto fundamental que deixou de ser discutido foi a questão tributária. No novo mercado de energia elétrica, o papel do comercializador é de fundamental importância e a incidência em cascata dos impostos em várias operações, através de vários agentes, está se tornando uma formidável fonte de arrecadação de ICMS para os Estados, mas repassado ao custo Brasil onera um setor fragilizado e que precisa se expandir.

Faltou sensibilidade política para o timing e quanto à forma de implantação do novo modelo. O governo e a Aneel emitiram as documentações legais para o mercado, com as diretrizes gerais, e deixaram que o mercado resolvesse o problema, assistindo passivamente aos desencontros de uma transição tumultuada pelas regras que o próprio governo criou ou se omitiu de criar como no caso da Energia de Angra, dos Excedentes de Itaipu, quanto aos contratos iniciais, quanto à evolução do ONS (Operador Nacional do Sistema), e mesmo quanto à não-privatização da geração federal, deixando o sistema "manco". Enfim, um autêntico presente de grego para todos, empresas privadas, estatais, consumidores e contribuintes.

Após a confusão, o remédio agora é definir e divulgar urgentemente uma nova matriz e um novo modelo energético. O problema básico do setor elétrico brasileiro é a falta de atração para os investidores em geral. Investidores não são somente os já estabelecidos, como Enron, AES, Duke, EDF, EDP, Iberdrola, Endesa, Tratebel, muitas beneficiadas com o dinheiro do próprio BNDES. Caso esse modelo persista, poderá se criar um oligopólio prejudicial ao pais. Os Estados Unidos contam com 3.500 empresas atuando no setor elétrico, gerando 914 mil MWs, tanto privadas como estaduais, federais e municipais.

O Brasil conta apenas com 70 mil MWs de geração e não mais que 52 agentes operando e o maior potencial hidrelétrico do mundo. Os fundos de pensão americanos já demonstraram interesse em investir R$ 10 bilhões no Brasil, mas não gostariam de assumir o risco diretamente. Analisaram nossa legislação e encontraram moitas cláusulas de "forca maior", ou seja, poder governamental de intervir.

Por essa razão, querem uma parceria com o RNDES em que elos apertariam os dólares e o banco estatal analisaria o risco. Assim, esse dinheiro poderia ser emprestado para dezenas de empresários brasileiros com competência comprovada em vários ramos e que estão desejosos de ingressar no setor.

Não é conveniente continuar com a discussão sobre o programa emergencial das térmicas. É a única solução para o racionamento. Isso não significa que o Brasil estaria mudando sua matriz adotando um modelo térmico como a maioria dos países. É preciso deixar bem claro que a nossa opção é o modelo hidráulico e que ele se torna mais estável e com preços menos voláteis com uma complementação térmica adequada,

Do ponto de vista dos investidores internacionais, sejam aqueles que já estão aqui como o dos que querem aportar novos recursos, alguns problemas tem de ser solucionados com criatividade. No programa térmico, a Petrobras fará o papel de um "colchão" para absorveras variações cambiais dos preços do gás no curto prazo, a ser repassado no longo prazo. Outro ponto critico e o risco cambial para pagamento dos custos de capital. Esses riscos poderiam ser mitigados com a criação de um fundo que funcionaria como hedge dos empréstimos em dólar, a ser administrado pelo BNDES com esse fim.

Mas o maior entrave é a falta de PPA’s - contratos de compra de energia a gás - para as térmicas, tanto para a atração de investimentos internacionais, como para a entrada em funcionamento de térmicas como a Eletrobold (da Enron) e Merchant Macaé (El Paso), prontas e inauguradas mas sem poder colocar suas energias fundamentais nessa crise. As empresas distribuidoras, potenciais compradoras dos PPNs, sentem-se inseguras sobre como se comportarão os preços das usinas hidrelétricas, praticamente pagas e cujos custos de produção hoje giram em torno de US$10 a US$20 por MW, quando uma térmica entraria no mercado a não menos de US$37/MW.

Outro fator inibidor é como projetar o mercado se não se sabe como se comportarão no futuro os consumidores livres, (a partir de 2003, o mercado ficará livre em 25% e até 2006, 100%). A Aneel até agora não definiu como será encaminhada a desregulamentação dos consumidores livres. Outra duvida é sobre a retirada do subsidio cruzado para o consumidor industrial. Hoje quem paga a conta são os consumidores residenciais e comerciais.

Mas se a energia encarecer abruptamente para o setor industrial, a inflação pode disparar, a balança comercial sofrerá com a perda de competitividade de nossos manufaturados e o custo Brasil vai para o espaço sideral.

Ao criar a Comercializadora Brasileira de Energia Elétrica (CBEE) o governo restringiu a atuação dessa entidade para situações emergências. Ainda não viu que tem nela um instrumento poderoso para consertar e conduzir todo o período de transição do mercado regulado para o livre, o que se bem conduzido não levaria mais que três anos. Essa comercializadora poderia induzir o MAE - Mercado Atacadista de Energia - a funcionar de acordo com as regras aprovadas pelos agentes e poderia também exercer o papel de conciliadora da discussão gerada pela aplicação do Anexo V.

Alguns setores governamentais entendem que a CBEE, através de algum instrumento legal, deveria ser a compradora de toda a energia dos contratos iniciais, bem como a vencedora de toda essa energia. Em outras palavras, todos os geradores venderiam sua energia dos contratos iniciais e os distribuidores comprariam toda a energia dos contratos iniciais da CBEE. A tarifa de venda de energia das geradoras para a CBEE ainda continuaria regulada ate o termino dos contratos iniciais. O preço da energia de venda da CBEE para os distribuidores seria definido em função da política a ser estabelecida pelo governo, que indicaria os preços de energia coerente com sua política de expansão da oferta de energia. Nesses preços poderiam estar embutidos os custos de absorção do Anexo V.

Dentro da política de que toda a venda de energia seria feita pela CBEE, se obrigaria os consumidores livres a também comprarem as suas necessidades da CBEE. Seria importante que, com um mix de energia velha e nova das térmicas, a CBEE monitorasse os preços para a indústria nacional, mantendo nossa competitividade nos mercados internacionais de manufaturados. A partir do equilíbrio do mercado entre oferta e demanda, os geradores poderiam vender suas energias diretamente aos comercializadores, distribuidores e consumidores livres, onde os preços de geração estariam sendo indicados pela CBEE.

Quanto à questão do Anexo V, criado para amenizar os efeitos de uma eventual crise de energia, seria importante que o governo mantivesse os termos contratuais, mas a fórmula mais empresarial possível para ajustar esses contratos aos eventuais desequilíbrios de que tanto reclamam geradoras e distribuidoras deve ser a contratação de auditores Internacionais é nacionais e uma ampla abertura da contabilidade dessas empresas. Paga-se o que é justo, mas é do próprio caráter empresarial demonstrar e provar a divida, apenas choradeira não adianta.

A energia de Angra, hoje questionada peta Tribunal de Contas da União e travando o andamento do MAE, pode ser comprada pela CBEE e seu excedente ser usado para regular o mercado. O impasse do excedente da energia de Itapu - hoje com dezenas de ações na Justiça - poderia ser resolvido através da criação de uma empresa de propósito especifico, virtual, e através de uma conta gráfica ir acumulando os resultados das operações do MAE. Quando os tribunais resolverem a questão, os saldos serão destinados ao vencedor da disputa judicial, Essa questão irá até o Supremo, porque envolve a soberania de um outro país e não pode travar o MAE.

Quando foi criado o mercado atacadista, distinto do Operador Nacional do Sistema, era óbvio que o funcionamento do mercado seria altamente arriscado pela necessidade especifica do sistema hidráulico brasileiro que exige que as operações sejam coordenadas e otimizadas em função das dimensões continentais do país.

Os regimes de chuvas são diferentes e nossas usinas têm de operar de forma centralizada através do ONS. Para os técnicos do setor, o modelo teria de ser mudado, com a implantação de um mercado antes da operação, conhecido por mercado day-ahead, hour-ahead, e o mercado em tempo real chamado in balance. Nos mercados, antes da operação seriam fechados os contratos de compra e venda entre os agentes que procurariam se cobrir das incertezas do preço do MAE, hora a hora. Os valores residuais de mercado não cobertos por estes contratos seriam então fechados pelo preço do MAE, que, com esse mecanismo, a parcela que ficaria exposta seria mínima.

Para os observadores do mercado de energia, os contratos antes da operação, ou seja, day-ahead ou hour-ahead, já vêm sendo praticados nos leilões da Bovespa, onde os certificados negociados são exatamente as diferenças de contratos iniciais com a previsão de realização de mercado. E os preços estão obedecendo as vontades de quem quer comprar com quem quer vender.

O Caso da Califórnia

A situação da crise da Califórnia de uma certa forma indica o caminho. Naquele estado americano a implantação do mercado livre em período de escassez trouxe problemas terríveis. Os preços da energia elétrica saltaram de US$ 50 para US$ 750 e até para US$ 1.500. Duas geradoras, a Edson Cia. e a Pacific Californian, foram à lona com débitos de US$11 bilhões.

O órgão regulador de energia, a FERC, sentiu-se impotente e chamou o FBI para investigar o que estava acontecendo com o mercado. Constatou-se que havia passeios da energia elétrica que ia para Estados como o Oregon, Nebraska e depois voltava para a Califórnia com preços ate 2.000% mais caros. Outras investigações constaram que sumiram inexplicavelmente cerca de 2.000 MW do parque gerador.

Com o FBI em cena, os preços retomaram de U$750 para U$50 e a energia que desaparecera misteriosamente voltou ao mercado. "Comprovada a manipulação, George W. Bush entrou em cena prometendo ir buscar todo o dinheiro do povo da Califórnia", segundo relato de Paul Krugman, no New York Times. Com essa pressão, as distribuidoras que agiam na Califórnia propuseram acordos multimilionários para fugir das investigações. Os "apagões" cessaram quando o governador Gray Davis criou uma empresa para comprar e vender toda a energia da Califórnia, de forma centralizada, esperando que o mercado reencontre seu ponto de equilíbrio entre oferta e demanda.

-José Arruda Silveira-